Uma entrevista com Makoto Fujimura
"O que nossos corações miseráveis sempre fizeram (cristãos e não cristãos) é criar ídolos por medo e impaciência, em vez de adorar essa Presença através das sarças ardentes ao nosso redor."
Makoto Fujimura
O artista plástico e escritor Makoto Fujimura finalmente tem seu primeiro livro publicado no Brasil, Arte + Fé, uma teologia do criar.
Como muitos sabem, o Bunker foi – e é - inspirado por muitas ideias de Mako, em especial a ideia de uma cultura regenerativa, que possa ser cultivada, nutrida, pela Beleza e pela Graça neste mundo fraturado, alquebrado. Desde que assisti Silêncio, de Martin Scorsese, e que descobri que Mako era o principal responsável pela estética do filme, passei a acompanhar seu trabalho com admiração cada vez maior. Folgo em saber que outro livro dele está em processo de tradução e deve chegar logo às livrarias do país.
P - É perceptível em seus escritos uma preocupação com o que chamamos de tradição. Você poderia expor seu conceito de tradição e sua importância para o seu trabalho e para a cultura em geral?
Makoto Fujimura - A tradição pode ser a base para a criação do Novo. É claro que cada base tradicional terá que ser modificada, até mesmo desafiada, para ser renovada. A palavra francesa para "tradição" está ligada às palavras “trabalho” (travail) e “viagem” (travel) - nesse sentido, uma "tradição" é redescoberta trabalhando-se contra ela e colocando alguma distância ("travel''- viagem") a ela.
[Makoto Fujimura - Tradition can be a base for creation of the New. Of course, each traditional base will have to be modified, even challenged, to be renewed. French word for "tradition" is linked to word "travail" and "travel" - in that sense, a "tradition" is rediscovered by working against it and placing some distance ("travel") to it.]
P - Em “Tradição e talento individual”, T. S. Eliot diz: "Nenhum poeta, nenhum artista de qualquer arte, tem seu significado completo sozinho. Seu significado, sua apreciação é a apreciação de sua relação com os poetas e artistas mortos. Não se pode valorizá-lo sozinho; você deve colocá-lo, para contraste e comparação, entre os mortos". A crítica literária de Eliot, especialmente seu conceito de tradição resumido na passagem que citei, influenciou você como sua poesia - especialmente Four Quartets, como você descreve em Art + Faith?
Makoto Fujimura - T.S. Eliot tem sido uma espécie de "mentor e companheiro" para mim durante os tempos sombrios da minha vida, incluindo o pós-11 de setembro, sendo eu um "sobrevivente" daquele dia e escolhendo morar em nosso loft - a três quarteirões das torres - por uma década. Não concordo totalmente com as preocupações que o levam a refinar o "declínio da cultura ocidental" exposta em "The Wasteland", mas seus escritos vão além dessas preocupações bastante "privilegiadas" em direção ao generativo, especialmente nos Four Quartets.
[Makoto Fujimura - T.S. Eliot has been sort of a "mentor and companion" to me during dark times of my life, including post-9/11 being a "survivor" of that day, and choosing to live in our loft - three blocks from the towers after - for a decade. Concerns that lead him to refine the "decline of Western culture" laid out in "The Wasteland" I do not fully embrace, but his writings move beyond these rather "priviledged" concerns into the generative, especially in "Four Quartets".]
P - Você poderia fazer uma breve reflexão sobre kintsugi e nihonga, em relação ao seu entendimento de tradição? E qual você acha que é a importância da tradição para a fé cristã em geral?
Makoto Fujimura - Kin-tsugi ("ouro" - "conserto" de utensílios de chá de cerâmica quebrados) e Nihonga (pintura de estilo japonês) são um fluxo de influência que eu especificamente conecto com Sen no Rikyu, o grande mestre do chá do Japão do século XVI. Rikyu era influenciado pelo influxo do cristianismo de sua época, e a forma de arte do chá da tarde foi inventada para criar a paz em tempo de guerra feudal, exatamente na época em que se iniciou a perniciosa perseguição aos cristãos. A arte do chá, que é a base de toda a estética japonesa especialmente no "ocultamento" da beleza, está diretamente ligada aos rituais eucarísticos através de Rikyu e seus discípulos, bem como de Tohaku Hasegawa, o artista e aliado mais próximo de Rikyu. Faço essas conexões em meu livro "Silence and Beauty" e também em "Art+Faith: A Theology of Making"
[Makoto Fujimura - Kin-tsugi ("Gold" - "Mending" of broken ceramic tea ware) and Nihonga (Japanese Style Painting) are a flow of influence that I specifically connect with Sen no Rikyu, the grand tea master of 16th century Japan. Rikyu was influenced by the influx of Christianity of his day, and the art form of high tea was invented to create peace in feudal war time, exactly during the time that began pernicious persecution of Christians. Art of tea, which is the base of all Japanese aesthetic especially in beauty's "hiddenness", is directly connected to the Eucharistic rituals through Rikyu and his disciples, as well as Tohaku Hasegawa, Rikyu's closest artist and ally. I make these connections in my book "Silence and Beauty" as well as "Art+Faith: A Theology of Making"]
P - Qual a sua visão sobre a obra de artistas que tratam basicamente da desumanidade, da podridão? Você acha que essa tendência que se intensificou na arte moderna pode levar, em algum sentido, à expressão do invisível, do sublime ou do transcendente?
Makoto Fujimura - Os artistas são criaturas honestas e, com a descrição que fazem da realidade da cultura em geral como "desumanizante", fazem uma representação precisa de nossa realidade. Isso é importante reconhecer, bem como valorizar os artistas (às vezes através de expressões brutalmente honestas) na cultura. Eles são, como foi observado por Ezra Pound e outros, "Canários das minas de carvão da cultura". Eles detectam veneno no ar e cantam.
O sublime e o transcendente devem ser conquistados através da fratura e da escuridão de nossos tempos. Há também, com certeza, uma tendência de os artistas modernos apenas celebrarem a fratura. Devemos, como Kintsugi, honrar a fratura e criar através deles a transcendência do ouro.
[Makoto Fujimura - Artists are honest creatures, and they describe the reality of culture at large as "dehumanizing" as an accurate depiction of our reality. That is important to recognize, as well as to value artists (sometimes making brutally honest expressions) in culture. They are, as it has been noted by Ezra Pound and others, "Canaries of the coal mines of culture". They detect poison in the air and sing. The sublime and transcendent must be earned through the brokenness and darkness of our times. There is also a tendency for sure for Modern artists to only celebrate the brokenness. We must, like Kintsugi, honor the brokenness, and create through them transcendence of gold.]
P - Há uma certa tendência na cultura ocidental moderna de ver a arte como uma religião – uma tendência que remonta ao romantismo e ao simbolismo, e ainda tem influência nos dias de hoje –; como você a relaciona ou compara com o conceito de arte como atividade criativa ligada à abundância gratuita do Criador? Parece-me que ambas as concepções têm obviamente fortes semelhanças, mas também uma discordância fundamental: segundo a cosmovisão cristã, beleza e criação sempre se referem, no fundo, a Deus, que não é uma projeção de ideais humanos, mas aquele que disse “eu sou o que sou”.
Makoto Fujimura - A Presença de Deus (há uma tradução rabínica de Êxodo 3:14 que afirma "Eu estarei com você sempre como estou com você agora") está em toda a cultura, incluindo a cultura "modernista" em que os artistas descartaram a noção de Deus. O que nossos corações miseráveis sempre fizeram (cristãos e não cristãos) é criar ídolos por medo e impaciência, em vez de adorar essa Presença através das sarças ardentes ao nosso redor. O Cristianismo moderno, em particular, também transformou em ídolos, tanto a “vitória” em discussões racionais, proposicionais, quanto o espetáculo de celebridades cristãs.
Como o Espírito não lê rótulos (da palavra "cristão" como rótulo adjetival), o Espírito pode pairar sobre as lacunas e comunidades exiladas como o mundo da arte. Não há uma mentalidade de "nós contra eles" no modo como Deus opera, pois Deus é soberano sobre todas as culturas e todos os lugares.
[Makoto Fujimura - God's Presence (there is one Rabbinic translation of Exodus 3:14 that states "I will be with you always as I am with you now") is throughout culture, including "modernist" culture that the artists have discarded the notion of God. What our wretched hearts have all have always done (Christians as well as non Christians) is to create idols out of fear and impatience, rather than worship this Presence through the burning bushes all about us. Modern Christianity, in particular, has also created idols out of rational propositional "winning" of the arguments, and spectacle of Christian celebrities.
Since the Spirit does not read labels (of the word "Christian" as an adjectival label), the Spirit can hover over the gaps and exiled communities such as the art world. There is no "we verses them" mentality in how God operates, as God is sovereign over all cultures and all places.]
P - Você poderia fazer um breve comentário sobre o papel essencial que o “pragmatismo utilitarista” desempenha na rejeição do conceito de arte como abundância e gratuidade, como expressão humana em resposta a Deus? Como relacionaria o pragmatismo utilitarista às “guerras culturais” e, ao mesmo tempo, à “lógica do mercado” que aspira abranger todos os aspectos da vida humana?
Makoto Fujimura - Não há nada de errado com "utilidade" ou "pragmatismo". Ambos fazem parte da revolução industrial, como valores com que passamos a ver nosso lugar no mundo. Mas quando nos tornamos apenas "Fazedores Humanos", em vez de "Seres Humanos", perdemos a beleza complexa do todo e nos tornamos vulneráveis ao alvo das forças transacionais do mercado. É mais fácil reduzir o complexo ecossistema da cultura e criar caricaturas "nós contra eles" para demonizar o outro, por medo. As forças do mercado aproveitarão esse medo e acentuarão a divisão.
O Pragmatismo Utilitarista, em primeiro lugar, é esse reducionismo que busca criar categorias fáceis. As palavras serão reduzidas a "eles estão fazendo isso e estão fazendo aquilo", para serem pragmáticos para a utilidade da mídia, dos negócios e do poder. Poetas e artistas resistem a esse reducionismo e infundem mistério e nuances complexas ao todo.
[Makoto Fujimura - There is nothing wrong with either "utility" or "pragmatism". They areboth part of the industrial revolution, as values that we have come to see our place in the world. But when we become only "Human Doings", rather than "Human Beings", we lose the complex beauty of the whole, and become vulnerable to the target of transactional market forces. It's easier to reduce the complex ecosystem of culture, and create "we verses them" caricatures of each other to demonize the other out of fear. The market forces will takeadvantage of this fear, and accentuate the divide.
Utilitarian Pragmatism, first, is this reductivism to create easy categories. The the words will be reduced to "they are doing this, and they are doing that," to be made pragmatic for the utility of media, business and power. Poets and artists resist this reductivism, and infuse mystery and complex nuances to the whole.]
P - Em certo ponto do livro, você diz que nosso impulso de criar, que é resposta ao Criador, pode ser distorcido, levando-nos a criar coisas transgressoras e perniciosas. Você poderia desenvolver essa ideia, explicando-nos a natureza dessa distorção e dos trabalhos que dela resultam?
Makoto Fujimura - Podemos criar obras de arte belas ou armas de destruição em massa. Como observei, tais poderes criadores podem criar em direção ao Novo como o Tabernáculo do Espírito, ou criar ídolos de autodestruição. Todas as obras, mesmo as obras "cristãs", podem se tornar um ídolo, dependendo do receptor e de como a obra é "usada" a serviço de uma ideologia (palavra que compartilha etimologia com a palavra "ídolo").
[Makoto Fujimura - We can create beautiful art or weapons of mass destruction. As I've noted, such creative powers can create toward the New as the Tabernacling of the Spirit, or create idols of self-destruction. All works, even "Christian" works can become an idol, depending on the receiver and how the work is "used" in service of an ideology (a word which shares etymology with the word "idol".]
P - Mark Rothko é uma grande influência para o seu trabalho; na sua arte contemplamos o abismo e o horror, mas também a “arbusto que ardia no fogo, mas não se consumia”.Andy Warhol fez uma série de pinturas que evocam Cristo, a Eucaristia e os mistérios da fé. No entanto, há alguns críticos conservadores, mesmo cristãos, que não entendem a arte abstrata ou a arte moderna em geral, referindo-se a elas como feias e sem sentido, e dizendo que esses artistas e movimentos nada mais são do que a prova inequívoca do declínio da arte e nossa cultura – muitos desses argumentos são usados nas 'guerras culturais' que você critica. Como podemos olhar para essas obras de arte e seus criadores, como podemos apreciá-las, para escapar desse beco sem saída? É possível ver esse tipo de obra de arte pela lente do “Deus extravagante” que está presente em seu livro?
Makoto Fujimura - Voltando a T. S. Eliot e sua preocupação com o "declínio da civilização ocidental", e o que já observei sobre a soberania de Deus sobre todas as culturas, podemos dizer agora que o melhor antídoto para esse medo do declínio, e até mesmo a análise crítica que produz, com escárnio, uma divisão desnecessária na cultura, é criar algo tão bonito e integrado que todos os lados venham a apreciar essa palavra final de um poeta. É o que vemos em Four Quartets, o último poema de Eliot, seu "último epitáfio". É melhor criar essa arte integrada, em vez de tentar convencer os céticos ou críticas superficiais. Rothko e Warhol são exemplos de grandes artistas, espontâneos e machucados, mas artistas que criaram obras de arte duradouras - a arte duradoura sempre gerará uma nova compreensão e uma nova visão da cultura que é extravagante.
[Makoto Fujimura - Going back to T.S. Eliot, and his concern for "decline of Western Civilization" and what I've already noted on the sovereignty of God over all cultures, we can say now that the best antidote to that fear of decline, and even critical analysis that sets up unnecessary divides in culture with derision, is to create something so beautiful and integrated that all sides will come to appreciate that final word of a poet. That's what we see in Four Quartets, Eliot's last poem, his "last epitaph". It's better to create such integrated art, rather than to try to convince the skeptics, or shallow criticisms. Rothko and Warhol are both examples of great artists, flowed and broken, but artists who created enduring works of art - enduring art will always generate new understanding and new vista of culture that is extravagant.]
P - A “Teologia do criar” possui uma beleza e uma simplicidade que emocionam e inspiram. Mas acredito que você deve ter se deparado com críticas ao longo do caminho. Quem é mais difícil de convencer (ou dialogar): teólogos ou artistas? E também, como você responde à 'Cultura do Cancelamento' que parece ser um novo capítulo nas 'Guerras Culturais'?
Makoto Fujimura - Mais uma vez, meu livro não é para "convencer", mas para encorajar TODAS as pessoas para a criatividade generativa de todos os tipos. Conheço James Davidson Hunter pessoalmente e, desde que seus livros foram publicados, tenho lembrado a ele que sua acurada perspectiva sociológica é uma oportunidade para os artistas criarem na divisão, em vez de a acentuar, e participarem de "batalhas por recursos limitados num jogo de soma zero". Os artistas não precisam ser recrutados para as linhas de frente das Guerras Culturais: temos a linguagem e a rica tradição de nos posicionarmos profeticamente contra as culturas desumanizadas e criar além delas. Os artistas podem "mudar o mundo" por meio de suas expressões honestas de vulnerabilidade, que podem dar certa esperança além dos desesperos de nossos tempos.
[Makoto Fujimura - Again, my book is not to "convince" but to encourage ALL people toward generative creativity of all kinds. I know James Davidson Hunter personally, andever since his books have been published, I have been reminding him that his accurate sociological perspective is an opportunity for artists to create into the divide, rather than accentuate, and participate in "limited resource battles of zero sum game". Artists do not need to be conscripted into the front lines of Culture Wars: We have the language and rich tradition of standing prophetically against the dehumanized cultures and creating beyond them. Artists can "change the world" through their honest expressions of vulnerability that can give certain hope beyond the despairs of our times.]
P - Arte + Fé é o primeiro de seus livros a ser publicado no Brasil, e há outro livro próximo de ser lançado por aqui. Você se surpreende ao saber que tem um público leitor em um país que parece culturalmente tão distante de sua formação cultural e do cenário cultural em que atua atualmente? Você poderia, por favor, enviar uma mensagem para seus leitores e admiradores brasileiros?
Makoto Fujimura - Estou totalmente surpreso! Que a cultura brasileira com sua riqueza e poder seja um catalisador para a renovação de todas as culturas.
[Makoto Fujimura - I am totally surprised! May the Brazilian culture with her richness and power be a catalyst for renewal of all cultures.]