Bunker do Dio

Bunker do Dio

Share this post

Bunker do Dio
Bunker do Dio
Ponto de Virada: A bomba e a guerra fria

Ponto de Virada: A bomba e a guerra fria

Ou como entender que a humanidade caminha para inexoravelmente amar e rematar Clausewitz

Avatar de Dionisius Amendola
Dionisius Amendola
nov 19, 2024
∙ Pago
4

Share this post

Bunker do Dio
Bunker do Dio
Ponto de Virada: A bomba e a guerra fria
1
Compartilhar

Ponto de Virada: A bomba e a guerra fria - ou como entender que a humanidade caminha para inexoravelmente amar e rematar Clausewitz

A estreia da série documental Ponto da Virada: A Bomba e a Guerra Fria, do cineasta Brian Knappenberger, produção da Netflix, é um bom momento para educar aqueles que pouco ou nada conhecem dos percalços pelos quais o mundo passou ao longo dos anos da Guerra Fria. Dividida em nove episódios, Knappenberger apresenta imagens de arquivos, entrevistas com historiadores, políticos, ex-militares, dissidentes, jornalistas, especialistas em armamento nuclear, nacionalistas ucranianos e pessoas comuns para nos revelar a verdade que paira sobre nossas cabeças nesta segunda década do século XXI – mais uma vez, nunca estivemos tão próximos de rematar Clausewitz.

Além das mencionadas entrevistas, muito do material com que Knappenberger trabalha foi garimpado em arquivos de imagens, cinejornais da época, documentos inéditos, material comum a muitos documentaristas, o que fazer com este material é que diferencia os grandes dos medianos. Apesar da grandiosidade apocalíptica do tema, o resultado final de Ponto da Virada: A Bomba e a Guerra Fria, é morno, ainda que tenha lá seus momentos de assombro. Talvez olhar para a obra de outros cine-documentaristas nos ajude a entender as qualidades e as fraquezas deste documentário.

** 

Esfir Chub nasceu e viveu sob o signo da revolução russa, e testemunhou uma época de convulsões sociais e políticas que até hoje reverberam no mundo. O império russo e sua dissolução, a formação da União Soviética, Nicolau II, Lênin e Stálin, a aristocracia, os revolucionários e os kulaks, a violência sem precedentes da Primeira Guerra Mundial e guerra civil que moldou o império soviético, tais são os personagens presentes na obra desta pioneira da arte do cinematógrafo. 

Nascida em 1894, Esther Il’inichna Shub ficou conhecida mundialmente como Esfir Chub, mas talvez mundialmente seja um exagero, visto que seu nome circula muito pouco fora dos círculos cinéfilos mais diligentes, situação que começa a se corrigir no Brasil graças ao lançamento de Minha vida é o cinema (em plano fechado), autobiografia da cineasta russa que agora é publicada no Brasil pela editora Kinoruss.

Integrante do Oktiabr (Outubro), um dos últimos grupos de artistas independentes criado na Rússia, em 1928, do qual participaram Aleksandr Rodtchenko, Varnara Stepanôva e Serguei Eisenstein, dentre outros nomes. Sua formação cinematográfica acontece quando ela começa a trabalhar no Departamento de Fotografia e Cinema, que virá a ser o Goskino – acrônimo para Conselho estatal do conselho de ministros da URSS para o cinema), órgão que passa a ser responsável pela produção cinematográfica da União Soviética. Lá ela pede para ser direcionada para o escritório de locações do Goskino como chefe de remontagem e editora das cartelas dos filmes que eram preparados para lançamento no país. Entre 1922 e 1925, Chub remonta e fez cartelas para aproximadamente duzentos filmes estrangeiros, filmes “atravessados de ideologia burguesa”, segundo suas próprias palavras.

O partido havia formulado sua atitude perante a produção cinematográfica estrangeira, especialmente filmes americanos e alemães, a grosso modo a linha diretriz afirmava que os filmes produzidos na Europa Ocidental e nos Estados Unidos eram veículos de “propagação e influência burguesa ou de desagregação das massas trabalhadoras” portanto era necessário “desenvolver a produção cinematográfica na Rússia seja por aportes do governo seja pela atração de capital privado (estrangeiro e russo), sob plena garantia de liderança ideológica e controle por parte do governo e do partido.”

Chub era responsável por preparar essas produções estrangeiras para exibição – faroestes, filmes de aventura, policiais – Eisenstein aparecia na sala de montagem e projeção para ver a jovem montadora em ação. Juntos eles remontaram um dos maiores clássicos do cinema, um filme sobre especuladores da bolsa, coquetes, marginais e aristocratas. Era nada mais nada menos que Dr. Mabuse, de Fritz Lang, que ganharia o título de Corrupção dourada no país dos sovietes.

A produção fílmica soviética era nascente, e o experimentalismo formal abria espaços para filmes como O Encouraçado Potemkin e Asas de um servo (ou Ivan, o Terrível) - que teve a mão da montadora. Mas Chub tinha seu olhar voltado aos cinegrafistas cronistas, os cinegrafistas que dominavam o ofício da reportagem. Ela era apaixonada por estes filmes-documentos e acalentava a vontade de produzir uma obra que não fossea encenação da História, mas sim a História revivida através do filme documental montado.

A queda da dinastia Romanov é fruto não apenas de um imenso talento e sensibilidade cinematográfica, mas também de uma persistente pesquisa historiográfica. Em sua pesquisa ela recorreu a diversos arquivos cinematográficos, cinejornais, e uma de suas principais fontes era a do Czar Nicolau II. Chub chegou a readquirir uma série de rolos filmados nos primeiros anos da revolução, que haviam sido vendidos para os Estados Unidos, entre eles, cenas únicas do próprio Lênin em ação.

Ao longo de dois meses, eu assisti 60 mil metros. Selecionei 5.200 metros para o filme. Nele entraram 1.500 metros. Filmei uma série de documentos históricos, jornais, objetos e retrabalhei uma série de quadros em laboratório.

Lançado quando a Revolução de Outubro comemorava dez anos, e sendo um filme realizado como encomenda, é deslumbrante ver como a cineasta consegue entregar uma obra que ultrapassa a mera peça de propaganda ideológica, ainda que claramente se alinhe com os valores da revolução. Como bem aponta o professor de filosofia Cassiano Terra Rodrigues em sua análise sobre a vida e obra da cineasta, ela consegue este feito ao evocar a simpatia do público, ou: 

“…ou a empatia, como atualmente é mais comum falar, do que a identificação pura e simples, como heróis ou personagens maiores que a vida, como nas narrativas mais comuns. A bem falar, não há propriamente personagens individuais no filme, há as classes distintas, contrapostas pela montagem e mostradas de uma perspectiva distanciada, embora não completamente isenta de juízos. Shub filma de acordo com a ideia da ostranenie, termo comumente traduzido como “estranhamento”, “desfamiliarização”, ou “distanciamento”, isto é, a técnica de apresentar ao público o que lhe é familiar, mas de uma maneira inusitada, estranha, não apenas para chocar, mas para suscitar a reflexão. No cinema de Shub, trata-se de evitar provocar uma identificação sentimental do espectador, sem, contudo, barrar completamente uma resposta emocional. Em outras palavras, Shub anda no fio da navalha entre o engajamento com o que se vê e o necessário distanciamento para pensar criticamente sobre o que se vê. Em suma, não é um cinema para quem prefere verdades prontas em vez de questionar essas mesmas verdades.”

Com A queda da família Romanov, Esfir Chub desenvolve toda uma gramática fílmica que irá criar as bases para o que hoje chamamos de documentário de compilação ou filmagem encontrada, isto é, a colagem, justaposição e a edição de imagens de eventos reais filmados e posteriormente arquivados, em muitas vezes, esquecidos. Esta gramática está presente na obra de diretores como Andrei Tarkóvski, Alexander Sokurov e Adam Curtis.

Continue a leitura com um teste grátis de 7 dias

Assine Bunker do Dio para continuar lendo esta publicação e obtenha 7 dias de acesso gratuito aos arquivos completos de publicações.

Already a paid subscriber? Entrar
© 2025 Dionisius Amendola
Privacidade ∙ Termos ∙ Aviso de coleta
Comece a escreverObtenha o App
Substack é o lar da grande cultura

Compartilhar