O único filme sobre a vida do Dylan que vocês precisam assistir....
I'm not there, Chamelet!
E saiu agorinha mesmo o trailer do filme A complete unknown, dirigido pelo James Mangold e tendo como protagonista Timóteo Chamalet no papel de Bob Zimmerman, ou Bob Dylan para as massas…e ao que parece estamos diante de mais uma daquelas cinebiografias esquemáticas que pouco ou nada acrescentam ao legado do artista, sendo nada mais que filmes com fórmulas batidas e sacais. Isso acontece especialmente neste caso, afinal, já existe uma cinebiografia magistral sobre o bardo americano, falo de I’m not there, de Todd Haynes, já escrevi sobre esta obra-prima e aproveito o zunzunzum em volta do novo filme e compartilho (novamente) meu ensaio sobre o filme, que conta com a atuação brilhante de Cate Blanchet, onde encarna Dylan mais que o próprio Dylan!
Engole essa, Timóteo!
As encarnações de Robert Zimmerman
“Je est un autre!”
Arthur Rimbaud
Bob Dylan passou sua carreira como figura pública utilizando máscaras e resistindo de todas as maneiras a ser enquadrado nesta ou naquela categoria. Ao longo dos anos ele usou diversos pseudônimos, criou histórias fantasiosas sobre sua vida e continua a iludir críticos, jornalistas, fãs. Se o mundo é um palco, para Dylan a vida é um palco, ele é o ator/criador de sua própria peça.
Para um artista tão difícil de definir e ‘capturar’, pensar em uma cinebiografia convencional seria suicídio para qualquer diretor, em especial um que já havia se complicado com seu personagem em um filme anterior.
Velvet Goldmine (1996) foi a tentativa do diretor Todd Haynes de produzir um inusitado musical sobre um dos períodos mais marcantes da carreira do cantor David Bowie. Tendo no elenco principal Ewan McGregor, Jonathan Rhys Meyers e Christian Bale, o filme contava a história não de David Bowie, mas de Ziggy Stardust. Mas todo o projeto perdeu seu brilho quando Bowie se recusou a liberar suas canções para o filme, assim mesmo com todo o esforço do diretor e dos atores (McGregor como Curt Wild, alter ego de Iggy Pop vale o filme!), o filme tem seus méritos, mas fica longe de ser a obra prometida e digna de seu ícone inspirador.
Portanto, quando Todd Haynes resolveu fazer um filme sobre Bob Dylan, a primeira coisa a ser feita era não desagradar o lendário cantor de maneira alguma!
A história é contada em detalhes em uma entrevista que Haynes deu para o New York Times à epóca do lançamento do filme, e ele fala de como procurou Jesse Dylan, o filho mais velho de Bob com sua primeira esposa, Sara. Jesse foi generoso e logo colocou Haynes em contato com o braço direito de Dylan, Jeff Rosen. Neste momento o diretor lançou a ideia que tinha para a cinebiografia de Dylan: um filme que teria várias vozes e rostos a interpretar diferentes e únicos Dylans em suas diversas encarnações, perspectivas e vozes.
Jeff Rosen imediatamente se interessou e pediu a Todd Haynes que enviasse todos os seus filmes. Dylan tinha uma nova turnê a caminho e assistir a filmes é seu passatempo preferido. Rosen também pediu que Todd escrevesse algo sobre o projeto e suas ideias, e daí aquele conselho que só verdadeiros amigos dão: tanto Rosen quanto Jesse Dylan aconselharam que Todd não usasse de maneira nenhuma os adjetivos ‘gênio’ ou ‘voz de uma geração’!
Haynes começou sua breve explanação – apenas uma página, disseram os cavaleiros da corte de Bob – com uma citação do poeta francês Arthur Rimbaud, em seguida a definição da arte ilusionista de Bob pelas palavras de um biógrafo do cantor: “Ele criava uma nova identidade a cada novo passo de sua carreira para assim criar uma identidade”. Em seguida, as palavras que mais parecem a proposta para uma tese do que uma ideia para um filme:
“Se existisse um filme em que a amplitude e o fluxo de uma vida criativa pudessem ser vivenciados, um filme que pudesse se abrir, em vez de consolidar, o que achamos que já conhecemos andando, nunca poderia estar dentro do arrumado arco de uma narrativa mestra. A estrutura de tal filme teria que ser fraturada, com numerosas aberturas e uma infinidade de vozes, com sua estratégia principal sendo uma de refração, não de condensação. Imagine um filme estilhaçado entre sete rostos separados - homens velhos, homens jovens, mulheres, crianças - cada um deles ocupando espaços em uma única vida.”
Se estas palavras não eram suficientes para convencer Dylan, podemos imaginar o cantor se surpreendendo com o filme experimental de Todd Haynes, ‘Superstar: The Karen Carpentre Story’, de 1987, que contava a história da vida e trágica morte da cantora do grupo Carpenters, desde sua descoberta em 1966, o sucesso, e sua trágica morte em 1983 por complicações provenientes de uma anorexia nervosa. O detalhe principal é Haynes usou no filme bonecas Barbie para ‘interpretar’ os personagens. Inusitado, criativo, vanguardista. Claro que Dylan disse sim para o novo filme de Haynes.
A Terra das Mascaradas
“América obcecada com autenticidade/Autenticidade a fantasia perfeita/A terra das máscaras, das fantasias, da auto-transformação/A criatividade artificial/A América é sobre falsas identidades e criatividade”
Todd Haynes
Para viver o seu personagem ilusório, Todd Haynes contou com seis atores para as diferentes encarnações: Christian Bale, Cate Blanchett, Marcus Carl Franklin, Richard Gere, Heath Ledger e Ben Whishaw, além dos múltiplos atores, o roteiro segue linhas narrativas diversas, que se intercalam de forma labirintica e fascinante.
Haynes rearranja sua narrativa de forma a nos apresentar as diversas encarnações de Bob Dylan.
O primeiro é um garoto negro que chama a si mesmo de Woody (Marcus Carl Franklin), e que vive entre andarilhos e vagabundos, a cantar o blues com sua ‘máquina de matar fascistas’.
Depois encontramos Jack Rollins (Christian Bale), cantor de protesto que ao lado de sua parceira Alice Fabian (Julianne Moore a interpretrar uma Joan Baez alternativa), tornou-se a ‘voz de uma geração’ para intelectuais politizados e artistas progressistas que viam nele o ‘profeta’. Não à toa portanto que mais pra frente no filme encontremos Jack novamente, mas agora como pastor, a cantar a palavra de Deus.
Mas Haynes irá metamorfosear ainda mais seu ‘personagem ausente’ – surge Robbie Clark (Heathe Ledger) um ator que está a interpretrar em um filme chamado ‘Grain of Sand’, nada mais nada menos do que…Jack Rolllins! Clark se envolve com Claire (Charlotte Gainsbourg) e os dois vivem um romance envolvente, único, apaixonante - até as piores qualidades de Clarck virem à tona e o casal se separar amargamente (qualquer semelhança com a relação de Dylan com sua ex-esposa Sara não é mera coincidência, e como se para deixar isso bem claro, Haynes irá fazer uso de uma versão de Idiot Wind que é devastadora! Essa versão não está na trilha sonora original do filme, mas foi lançada na série de bootlegs oficiais do cantor, More Blood, More Tracks, que registra o processo de gravação de Blood on the Tracks, um dos discos mais doloridos e belos do cantor).
Então surge como uma estrela mercurial o irascivel, sarcástico e genial Jude Quinn (Cate Blanchett), que vive aquele Dylan que em geral é aquele com que as pessoas mais se identificam, o autor de três discos impecáveis, atemporais, feitos durante os anos de 1964-1966, e que trocou o violão pela guitarra elétrica, se juntou a uma banda de rock e virou o Judas de toda uma geração!
Por fim, vivendo uma cidadezinha chamada Hallowe’en, encontramos Billy (Richard Gere dando vida ao lendário pistoleiro Billy the Kid). Billy, que aparentemente escapou das mãos de Patt Garrett, vive agora entre os habitantes assustados com os ‘novos tempos’ que prometem varrer a cidade do mapa.
Assim como os personagens de Masked and Anonymous, os personagens do filme de Haynes habitam um país – ou mesmo um mundo – que não é exatamente o nosso, sendo mais uma terra mitológica – e eles se assemelham e se afastam, se confundem e se distanciam da vida do próprio Bob Dylan. É curioso notar como Larry Charles e Todd Haynes – cada um a sua maneira e de acordo com sua visão artística (e do que Dylan representa) – buscam o mesmo espírito criativo que parece mover o cantor americano. Ambos os diretores usam de colagens, improvisação, simbolismos, máscaras enfim, para realizar filmes, criando - ou recriando - a própria tradição dos musicais norte-americanos.
I'm not There espelha, nas análise certeira de Kim Wilkins, “a duplicação estética e temática do profeta e do trapaceiro. O filme incentive o espectador a se engajar em seu jogo intertextual e reconhecer suas referências a Bob Dylan, no entanto, essa intertextualidade atua como um adiamento constante e, portanto, serve para destacar simultaneamente que ele, como sujeito do filme, ‘não está lá’ […] apesar da presença de múltiplos personagens, nenhuma identidade clara é incorporada. A inefabilidade da existência humana é apresentada como identidade textual, na qual cada ponto de referência e acesso é transferido para outro local de significação cultural”
Dois filmes nos ajudam a captar melhor esta ‘duplicação estética e temática’ que claramente influenciaram a visão de Todd Haynes.
O primeiro é a obra-prima do diretor italiano Federico Fellini, 8½, uma fábula cinematográfica que explora – como no filme de Haynes – diferentes épocas e dimensões temporais, na qual transitam personagens que podem ou não ser reais, onde o personagem principal Guido Anselmi, interpretado por Marcello Mastroianni, é o alter-ego do diretor em busca de inspiração, e para tal ele irá revisitar sua vida, suas fantasias, seus desejos e medos em uma anamnese pessoal através da qual, para criar, o artista deve se reencontrar, mesmo que nos sonhos.
Guido flutua em sonhos - 8 ½ de Federico Fellini
Jude Quinn flutua em sonhos - I’m Not There de Todd Haynes
E se I’m Not There é um estudo sobre identidades e máscaras, em especial aquelas que usamos para nos proteger do mundo exterior, em especial aquelas que construímos para nós mesmos, então Zelig é o personagem de Woody Allen que carrega em si a capacidade máxima de ilusão, capacidade esta que pode ser uma benção, mas também uma maldição: no limite, o uso constante de máscaras pode levar à dissolução da nossa real identidade.
Os vários Zeligs – Zelig de Woody Allen
Os vários Bobs – I’m Not There de Todd Haynes
Digno de nota é que o filme tem um clima de vaudeville, circense, onde mágicos e palhaços, girafas e ilusionistas, cantores e jovens beldades andam e vivem, amam e se perdem, iludem e encantam. É neste entrelaçar de narrativas, nesta mistura de rostos e vozes, épocass e culturas, que Todd Haynes nos entrega uma cinebiografia que é também uma meditação sobre a própria arte, sobre os caminhos da criatividade e da imaginação, fazendo de seu filme uma obra inesgotável, que ganha novos significados e profundidade a cada vez que a assistimos.
As Canções que não estão lá!
Ao se envolver no projeto desta inusitada cinebiografia, Todd Haynes sabia que as canções de Bob seriam fundamentais para compor sua visão do cantor, mas ele também sabia que apenas colocar estas canções no filme, em suas versões originais, tiraria o clima camaleonico da sua obra, em especial na hora de fazer as cenas onde os atores ‘dublariam’ estas canções. Seria muito esquisito ter um jovem Marcus Carl Franklin mexendo os lábios e ouvirmos a voz de Bob.
Haynes viu aí uma a oportunidade de atrair artistas para criar, recriando as canções originais, e neste novo processo, as canções ganhariam novas cores, vida e signficado. Curiosamente no filme existem canções da própria voz de Dylan, como o já citado outtake de Idiot Wind, mas também Blind Willie McTell, e em especial I’m Not There, esta sendo a única que aparece na trilha sonora oficial do filme.
Outro ponto interessante é que Haynes usa e abusa dos versos de Dylan para construir os diálogos de seus personagens, para aqueles com ouvidos atentos, é um prazer descobrir estas referências e usos, e ver como os versos de Dylan alcançam aquela familiaridade do uso que torna estes versos universais.
Haynes, em companhia de seus parceiros Randall Poster e Jim Dunbar, reuniram cantores, músicos e compositores dos mais variados estilos para reinterpretar as músicas. Mas o grande truque aqui foi a sacada de gravar boa parte da trilha sonora com duas bandas ‘fixas’, que fazem com que exista uma certa ‘coesão’ musical. Ao deixar que a Calexico e a Million Dollar Bashers (um supergrupo reunindo Steve Shelley do Sonic Youth, Tom Verlaine, Tony Garnier o baixista regular de Dylan, Nels Cline guitarrista do Wilco, e mais Smokey Hormel e o organist John Medeski), essa unidade sonora é construída, e temos uma trilha sonora que é também, e porque não, um disco conceitual a refletir os temas do filme.
Há na escolha dos produtores do material de Dylan para aparecer no filme uma clara e sábia decisão de deixar os clássicos mais populares do cantor de ‘fora’, e a construção sonora utiliza muito material que só seria lançado em discos tais como The Basement Tapes, Biography e na série dos bootlegs oficiais. Por isso não estranhem não encontrar aqui músicas como Blowin in the Wind ou Like a Rolling Stone.
E a partir disso a trilha nos leva a descobrir que Willie Nelson e Calexico foram feitos uma para o outro; Charlotte Gainsbourg toma para si Just Like a Woman, provando que é uma das maiores interpretes femininas da música pop atual; Mark Lanegan canta The Man in the Long Black Coat dando-lhe cores neogóticas; Jim James encarna o Dylan da fase Rolling Thunder Revue e nos brinda com brilhantes interpretações, em especial I’m going to Acapulco.
Há ainda o brilho discreto de Chan Marshal em sua versão de Stuck Inside the Mobile with the Memphis Blues Again, e Stephen Malkmus e a Million Dollar Bashers entregam uma visceral e mercurial Ballad of a Thin Man, Yo la Tengo é outra banda que vai mostrar que, como diria um crítica, ‘Bob Dylan contém multidões’!
Ao fim da experiência estética, visual e musica, criada com fina maestria e obsessão apaixonada por Todd Haynes, só podemos dizer: boa sorte aí, James Mangold e Timothée Chalamet, vocês vão precisar.
Eu li e gostei,parabéns ao Dionisius.