Ler é cultivar um jardim interior

Espaços de harmonia e contemplação, os jardins e os livros são semelhantes em sua inutilidade essencial.

“Esto es un jardín:

un lugar para leer, escuchar, pasear, charlar, pensar, descansar, estudiar, trabajar y jugar.

Un lugar en el que crece y se celebra de múltiples formas la vida: 

​la de los que a él acuden, la del propio jardín.”

Tema de Jardin LAC

Nestas últimas semanas ando a frequentar pouco o Substack, tanto em vista de obrigações financeiras (os famosos boletos que nunca deixam de chegar), quanto pela avalanche de novos usuários que a cada dia lançam mais e mais textos que não conseguimos ler. O cuidar de uma livraria também exige atenção, tanto na batalha de fazer o negócio acontecer – vender livros no Brasil não é fácil -, quanto no acompanhamento dos lançamentos e descobertas, ou redescobertas literárias.

Das diversas leituras que fiz nos últimos tempos será o novo livro de Michèle Petit, Somos animais poéticos, um dos mais interessantes e que não apenas fala a nós, pessoas dos livros, mas também dialoga de forma supreendente com nomes como o do artista plástico Makoto Fujimura e do filósofo Byung-Chul Han, ainda que não de forma consciente.

Somos animais poéticos segue a linha de estudos culturais e reflexões sobre o impacto dos livros e da literatura na vida das pessoas e das sociedades que a autora desenvolve há mais de trinta anos. Assim como em obras como A arte de ler, Ler o mundo e Os jovens e a leitura, este novo livro aborda a “leitura em tempos de crise”, e a importância da arte, dos livros e da beleza como manutenção ou resgate de nossa identidade íntima e comum diante das diversas crises que assolam nossa vida contemporânea, deteriorada por crises econômicas, violência social e deslocamentos forçados. A maior parte dos artigos deste novo livro são frutos de conferências da autora e lidam com o impacto do isolamento social que foi imposto quando da pandemia de Covid-19, e de como os livros, as bibliotecas, as livrarias e aqueles que compartilham deste universo de palavras e páginas souberam criar seus espaços e paisagens interiores diante do “fim do mundo lá de fora”. Tal ato de criação demandava antes de tudo que estivéssemos atentos à harmonia lírica – invisível - que sustenta nossa existência no mundo.

Já no primeiro capítulo do livro Petit reflete sobre como a Beleza é uma dimensão indispensável aos seres humanos, uma “necessidade universal” que pode ser definida como “uma sensação de harmonia entre nós e o mundo.” Tal sensação pode ser efêmera, e está aí talvez sua singular importância, tal efemeridade é justamente o que determina sua importância para nosso ser interior, pois ela é “inútil” para um mundo tecnicista e pragmático que faz de tudo para nos dominar, submeter.

Esta Beleza pode ser interpretada também como Esperança, pois ambas carregam em si a transcendência. Ambas animam nosso espírito, nosso corpo, nossa linguagem. Como diz Byung-Chul Han:

“A esperança como estado de ânimo, como um ânimo fundamental, é pré-linguístico, pré-verbal. Ela determina e afina a linguagem.”

O afinar é harmonizar a linguagem, e ao fazermos isso nos harmonizamos com o mundo. Os momentos de harmonia com o mundo acontecem principalmente quando nos encontramos em jardins, estes espaços que têm nas bibliotecas (jardins) e nos livros (as flores) seus semelhantes. Lembremos que um dos fundamentos da cultura é sua relação com o cultivo e a nutrição – com a regeneração, portanto, a Cultura é um jardim que floresce quando bem cuidado.

Espaços de harmonia e contemplação, os jardins e os livros são semelhantes em sua inutilidade essencial.