Houellebecq e Carrère
Constatar o bizarro caos em que nos encontramos não faz mais que sublinhar os imensos méritos de Emmanuel Carrère.
Já comentei por aqui que ando a ler a obra de Emmanuel Carrère, em algum momento devo escrever sobre seus livros, mas enquanto isso eis que me deparo com um belíssimo ensaio de Michel Houellebecq sobre seu compatriota. O ensaio encontra-se no livro Intervenções, um dos últimos do autor de Plataforma e Aniquilação, ainda inédito nestas plagas, portanto compartilho algumas das palavras deste que é dos grandes escritores da atualidade sobre outro gigante das letras francesas, o ensaio, intitulado Emmanuel Carrère e o problema do bem, é agudo, surpreendente e exemplar daquela “aventura da conversação” só possível através da palavra.
Com a palavra, Houellebecq:
“…Emmanuel Carrère escolheu não inventar personagens, nem acontecimentos importantes; decidiu comportar-se, no essencial, como testemunha (não uma testemunha exata…mas apenas testemunha). Claro que esta escolha me interessa, nem que seja porque optei, até o momento, pela opção inversa.
…
Não sei exactamente quando, em que circunstâncias, ele se decidiu por esta escolha; mas tenho uma ligeira desconfiança quanto ao porquê. Ela chega-me, estranhamente, dos meus primeiros trabalhos sobre Lovecraft. Com a simpática radicalidade que o caracteriza, o autor americano descarta o romance realista desta forma: «O caos do universo é tão desmesurado que nenhum texto escrito o pode descrever, mesmo resumidamente.» Parece-me que Emmanuel Carrère, num determinado momento, se confrontou com um problema da mesma ordem. As pessoas já não sabem como viver, e isso é dizer o mínimo. O caos é tão absoluto, a angústia tão generalizada, que nenhum modelo de comportamento herdado dos séculos anteriores parece aplicável aos dias actuais. A dada altura, Emmanuel Carrère considerou que era impossível não apenas recorrer às qualidades existentes, mas até criar novas. Chegara o tempo do «homem sem qualidades», profetizado, mesmo se de forma aproximativa, por Musil.
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