A singular arte de Kuniko Tsurita
Um homem observa uma acrobata contorcer seu corpo obsessivamente; um personagem atravessa de um quadrinho a outro "rasgando" a página do gibi; uma outra personagem caminha pela cidade vazia, todos sumiram, o céu está azul e há apenas uma nuvem, a nuvem de uma explosão nuclear; jovens refletem sobre política e sobre a arte subversiva de desenhar quadrinhos; uma serpente marinha se encanta por uma estrela no céu e sai em sua busca.
Eis algumas das personagens e tramas reunidas na coletânea A Tragédia da Princesa Rojunomiya, coletânea inédita publicada no Brasil pela Veneta, e que apresenta o trabalho da mangaká Kuniko Tsurita (1947-1985), e que apresenta o início do período maduro de seu trabalho em 1966, seu ápice e seus derradeiros trabalhos produzidos até pouco antes de sua morte em 1981. O que temos é apresentação de uma artista versátil, única, que experimentou vários estilos mas sem nunca perder sua identidade visual própria.
Tsurita foi uma das primeiras mulheres desenhar e roteirizar mangás no Japão dos anos 60, na revista Garo, mas ela não se contentava em escrever ou desenhar roteiros “para garotas” ela não queria escrever mangás de romances e personagens fofos e corações apaixonados: seu trabalho era vanguardista, radical, estranho, beirava o surreal, um material muito diferente daquele produzido para o público que seria o esperado para ela, o feminino. Sua inspiração era a angústia juvenil, as agruras da criação, a descoberta e estranhamento com a sexualidade, a descrença com o futuro, as doenças do corpo e do espírito. Em muitos aspectos o trabalho de Tsurita antecipa, tanto no estilo quanto na sinceridade confessional, as reflexões e obsessões pessoais, autobiográficas e psicológicas que marcam a obra de nomes mais conhecidos do grande público como Robert Crumb e Art Spiegelman.
Se podemos identificar no trabalho de Tsurita a influência de nomes como Osamu Tezuka não se deve menosprezar a influência de outras fontes, afinal, Tsurita era um artista gekiga, e ferozmente independente, uma artista atraída para o lado do pesadelo existencial dos filmes nouvelle vague, pelo cinema de Bergman e as obras de Strindberg.
Tsurita morreu muito cedo, aos 37 anos, vítima da doença de lúpus. E muito de sua obra lida com o impacto da doença em sua vida, com a morte e a auto-aniquilação, o isolamento, a disforia e a saudade. Seus protagonistas muitas vezes estão presos em seus corpos, limitados por uma decadência interior, mesmo que seus arredores pareçam convidativamente abertos, cheios de possibilidades [...] "seus corpos estão presos pela sociedade, estão presos por seus parceiros, estão presos por mentes e corpos que não podem realizar." E mesmo assim, ao ler seu trabalho, eis que nos deparamos com a plena liberdade que só a imaginação possibilita.