A lição de Linus Van Pelt
Ainda nas primeiras tirinhas em que somos apresentados a Linus Van Pelt, uma característica salta aos olhos: seu fascínio e domínio sobre os objetos físicos, ele usa suas mãos para brincar com barcos, bolas, com cubos ele monta cadeiras e estruturas que parecem impossíveis para os outros, com cartas ele constrói castelos, com a areia do parquinho ele se torna um arquiteto magistral, e com o tempo ele irá encontrar o objeto que será seu conforto, sua segurança, objeto que ganhará vida e será seu amigo, companheiro, protetor: seu cobertor.
Essa obsessão pelas coisas físicas, pelos objetos que o cercam, parece ser a fonte de seu desenvolvimento intelectual e de sua peculiar filosofia. Ele é admirado (e incompreendido) por sua admiração por livros e em especial pela Bíblia, e irá criar uma teologia em torno da fé na “Grande Abóbora”- uma figura que, como o Papai Noel no Natal - visita as crianças no Halloween.
Schulz, o criador de Linus e de toda uma gama de personagens que ficaram mundialmente conhecidos como a Turma do Charlie Brown, parecia entender instintivamente a importância dos objetos para a formação emocional e intelectual das crianças, como estes objetos constroem uma ponte para a realidade, para o outro que escapa de sua fantasia infantil de onipotência. Tais objetos são chamados de “objetos de transição”, pois eles cumprem uma função vital: eles dão confiança e segurança, fazem a criança perder o medo de ficar sozinha, permitindo que elas cresçam no mundo. Elas são, nas palavras do filósofo Byung-Chul Han, as “primeiras coisas do mundo que estabilizam a vida da primeira infância”, estabelecendo um espaço de “diálogo no qual a criança se encontra com o outro.”
Cartunista que escreveu e desenhou suas tiras diariamente ao longo de cinquenta anos, Schulz era um artesão no sentido pleno da palavra, um artista que usava suas mãos para criar, e que criou até o fim de sua vida, algo visível para todos aqueles que percebiam nas tirinhas dos últimos anos um traço mais vacilante, fragilizado. As mãos de Schulz eram mãos criadoras, como são - com maior ou menor talento - nossas próprias. Mãos que constroem objetos, objetos que constroem memórias, identidade, o mundo.
No excelente livro Não-Coisas, Reviravoltas do mundo da vida, o filósofo Byung-Chul Han reflete sobre este nosso mundo contemporâneo cada vez mais digitalizado, cada vez mais informativo e informatizado, um mundo a cada dia mais tênue, “descodificado e desencorajado”, onda nada mais retém qualidades de palpável e tangível, um mundo desmemoriado, fragmentário e eternamente transitório, liminal. Neste novo mundo idealizada pelos grandes tecnocratas do vale do silício e por seus imitadores de diversas áreas, temos a celebração de um regime de informação pós-factual, efêmeras e intangíveis, dominada por excitação e emoções inconstantes, onde a verdade concreta é um incômodo, pois esta demanda tempo e dedicação - e neste novo mundo não há espaço para tais luxos - neste novo mundo, tempo, dedicação e silêncio são luxos de uma elite que atiça, alimenta e lucra com os desejos de friends & followers. Neste novo mundo de não-coisas não há Ser, há apenas informação.
E alimentados por este constante e interminável fluxo de informações, onde rolamos as telas de nossos celulares obsessivamente sempre atrás do próximo estímulo que irá atiçar nossos desejos e ressentimentos, perdemos a capacidade de olhar, de ouvir, de perceber o mundo e o outro. Não escapa a Han o quão dramática é esta condição, e quão imperceptível ela é para nós:
“O desaparecimento do outro é na verdade um evento dramático. Mas isso acontece de forma tão imperceptível que nem mesmo estamos propriamente cientes disso. O outro como mistério, o outro como olhar, o outro como voz desaparece. O outro, roubado de sua alteridades, naufraga em um objeto disponível e consumível.”
Este mundo de não-coisas é um mundo de fantasmas. E os fantasmas habitam o “inferno do igual”, este lugar onde as “coisas agora nascem quase mortas”.
Os objetos que nos cercam possuem história, sentido, sentimentos, são imbuídos de vida e podem nos acalentar em nossos sonos inconstantes e temerosos. As páginas amareladas de um livro, os estalos de um disco de vinil, o conforto macio de um bicho de pelúcia, uma fotografia desbotada, são mais do que a mera informação contida nesses objetos - as canções, os poemas, etc - elas são as marcas do tempo, são exposição e vulnerabilidade, são lembrança e memória. E se tudo der certo, sobreviverão a nós.